Maio de 68 na França, o ano que transformou os valores do Ocidente
15/05/2018 18:10
Pedro Madeira

Há meio século, uma onda de rebeliões assolava a sociedade francesa e mostrava para o mundo ideias libertárias

O mês de maio em 1968 levou multidões às ruas. Foto: WikimediaCommons 

Há 50 anos, estudantes universitários e professores, operários, artistas e intelectuais foram para as ruas da França enfrentar as velhas estruturas conservadoras. Jovens em sua maioria, aqueles manifestantes buscavam inverter o status quo entoando lemas como ‘’a imaginação no poder’’ e ‘’é proibido proibir’’. O mês de maio de 1968 foi um período em que rebeliões e ideias libertárias colocaram o país do presidente e general Charles de Gaulle sob pressão. Mas maio de 68 foi além das manifestações no Quartier Latin, em Paris. Foi o símbolo de uma guinada para uma sociedade menos conservadora, não só na França como para o Ocidente.

As ruas e as universidades foram o palco das manifestações. O que começou como uma revolta estudantil contra a prisão de manifestantes, em 22 de março daquele ano, posteriormente tomou proporções decisivas para a história. Naquela sexta-feira 22, intelectuais, artistas e 150 estudantes ocuparam o prédio da administração da Universidade de Nanterre, na região metropolitana de Paris, em ato contra a prisão de ativistas. De férias na França em maio daquele ano, o jornalista Zuenir Ventura foi chamado por um amigo a se juntar com os estudantes franceses nas ruas parisienses e se tornou uma testemunha do que viria se tornar história. Ele reuniu essas memórias, e outras, no livro 1968: o Ano que não terminou, lançado em 1989 pela editora Nova Fronteira, que ganhou edição comemorativa de 30 anos este ano. Ele diz que aquela geração, que se pôs a desperdiçar os melhores anos da vida por uma causa cívica, tinha a vontade de mudar.

- Não era uma vontade particular, era coletiva. Ela tinha vontade de mudar o mundo. Ela realmente sentia por uma causa e pela ética. A utopia, outra marca dessa época, nos levou a se entregar com uma coragem e, às vezes, com uma porralouquice muito grande. Mas 1968 teve coisas muito boas e coisas muito ruins também. Distante, a gente costuma a mitificar um pouco, idealizar o passado – afirma.

Florian é alemão e filho da geração de 68. Foto: Fernanda Maia 

O professor Florian Hoffman, do Departamento de Direito, é alemão, nasceu na década de 1970 e lembra que a geração dos pais dele tinha uma desconfiança com o passado sombrio de guerras do país. De acordo com ele, o ano de 1968 chegou muito espelhado ainda na sociedade do século XIX e essa situação gerou conflito entre as gerações. Segundo Hoffman, o mundo pré-68, no Ocidente, era outro. Ele acredita que os horizontes sócio-culturais de hoje foram criados por aqueles que se levantaram em 1968.

- Na Alemanha, por exemplo, é a geração, basicamente, dos filhos da geração da Segunda Guerra e do Holocausto. Ela acusa os pais de só trabalharem e nunca, de fato, conversarem, inclusive com nós, seus filhos, sobre o Holocausto e porque isso aconteceu. E qual o papel deles naquilo. Essas rupturas, criaram novos horizontes do que a gente define hoje como moderno, contemporâneo e normal, mas a partir de 68 – atesta.

As ruas de Tolouse ocupadas pelos manifestantes, Cena comum naquele maio. Foto: WikimediaCommons 

A União Nacional dos Estudantes da França, a UNEF, convocou, para o dia 6 de maio, manifestantes para revogar a expulsão dos estudantes envolvidos em Nanterre, dias antes, e protestar contra a ocupação da polícia na Sorbonne. Vinte mil pessoas, em sua maioria jovens universitários, participaram do ato, mas a universidade de Nanterre continuou fechada. O professor Maurício Parada, do Departamento de História, diz que, na História, o jovem nunca tinha sido visto antes como um indivíduo capaz de produzir narrativas, ações, e de se organizar como força política.

- Tem um elemento de novidade aí. Na medida em que, mesmo os revolucionários pós-guerra, eram figuras jovens. Ghandi, Mao Tsé-Tung, mesmo Martin Luther King ou Malcom X, tinham certa juventude na fala. Não eram anciões, como o Churchill (Primeiro ministro do Reino Unido) ou Lenin (chefe de governo da República Russa) que eram sujeitos com, pelo menos, mais que 50. Esse jovem é uma figura diferente – conclui.

Parada lembra que aquela geração nascida no início da década de 1950 cresceu em um ciclo positivo da economia global, mesmo com a dura manutenção do pós-guerra. Para o professor, também é significativo pensar que os insurgentes de 1968 não viveram as duas guerras mundiais ou passaram pelas experiências sociais de privação e violência, como os pais e avós.

Os pôsteres foram uma ferramenta de propagação das ideias naquele mês. Foto:WikimediaCommons 
    

- As últimas duas gerações passadas viveram guerras, então há uma certa sincronia no tempo. No entanto, em relação a geração de 68, existe um fosso, uma certa descontinuidade no tempo entre as gerações.

Florian lembra que existia a disputa entre os sistemas políticos capitalista e socialista, seja soviético, chinês, cubano ou outras formas. Ele diz que havia um desencanto geral com o modelo soviético stalinista, mas que outras formas de socialismo estavam em moda e eram vistas como opções. De acordo com o professor, o domínio do Ocidente não era total.

- Hoje em dia, esquecemos muito facilmente que ainda tinha o socialismo real existente. As pessoas sabiam que tinham uma certa concorrência sistêmica. E com a URSS sob um desencanto geral, somado às imagens vindas da revolução cultural da China, onde jovens estudantes parecendo quase que tomando o poder, criou um imaginário em 1968 no ocidente, embora historicamente complexo.

Operários e estudantes em frente a uma fábrica no sul da França. Foto: WikimediaCommons 

Outra novidade desse período foi a convergência de causas variadas em um bloco heterogêneo de reivindicação. Em 19 de maio, operários se juntaram à causa política dos jovens, e o dia terminou com dez milhões de manifestantes entre as greves e a rua. A demonstração de força dos manifestantes assustou o general De Gaulle, que negociou um aumento de 35% para o salário mínimo. O anti-racismo, a luta contra o colonialismo, a causa ecológica e a movimentação libertária de homossexuais e feministas, também foram temas que estiveram naquele maio.

A professora Sonia Giacomini, do Departamento de Ciências Sociais, diz que, do ponto de vista das bandeiras feministas, 68 é um ano importante pelos valores libertários que propagou. Ela assinala que as bandeiras feministas ganharam estrutura e resultado depois do ano de 1968 e que o feminismo estava ali porque era um caldo de cultura da esquerda daquela época.  

- Até 68, nos alojamentos universitários, as moças só podiam voltar até às 23 horas. Então, existia essa diferença nos direitos muito marcada. Dessa época se fala muito da revolução sexual, mas as mudanças, por exemplo, o aborto, só vieram depois de 1968. O ano foi um marco que abriu um espaço para que isso emergisse – esclarece

A professora Sonia Giacomini destaca que as bandeiras feministas vieram depiois de 1968, Foto: Fernanda Maia

A pressão estudantil levou De Gaulle a sair do país no dia 29 de maio, sem deixar informações sobre o paradeiro, e os estudantes celebraram como vitória. No dia 30 de maio, o presidente francês transmitiu pelos veículos de comunicação que não renunciaria, que convocaria eleições para junho, e as ruas se acalmaram. O professor Florian Hoffman diz que, apesar de a revolução política pretendida ter fracassado, aquela geração deixou as bases para uma abertura de horizontes na sociedade, visto até hoje.

- A revolução foi ter criado novos horizontes, base para o feminismo, anti-racismo, anti-fascismo, anti-homofobia, e um incipiente movimento ecológico. Isso tudo, hoje em dia, independente de onde a gente estiver, são causas que a gente pode defender.

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